TEXTO: UOL
Carlos Madeira
1. Tortura e ausência de
direitos humanos
As torturas e assassinatos foram a
marca mais violenta do período da ditadura. Pensar em direitos humanos era
apenas um sonho. Havia até um manual de como os militares deveriam
torturar para extrair confissões, com práticas como choques, afogamentos e sufocamentos.
“As restrições às liberdades e à participação política reduziram a capacidade
cidadã de atuar na esfera pública e empobreceram a circulação de ideias no
país", diz o diretor-executivo da Anistia Internacional Brasil, Atila
Roque. Sem os direitos humanos, as torturas contra os opositores ao regime
prosperaram. Até hoje a Comissão Nacional de Verdade busca dados e números
exatos de vítimas do regime. "Os agentes da ditadura perpetraram
crimes contra a humanidade --tortura, estupro, assassinato, desaparecimento--
que vitimaram opositores do regime e implantaram um clima de terror que marcou
profundamente a geração que viveu o período mais duro do regime militar",
afirma. Para Roque, o Brasil ainda convive com um legado de
"violência e impunidade" deixado pela militarização. "Isso
persiste em algumas esferas do Estado, muito especialmente nos campos da
justiça e da segurança pública, onde tortura e execuções ainda fazem parte dos
problemas graves que enfrentamos", complementa.
2. Censura e ataque à imprensa
Uma das marcas mais
conhecidas da ditadura foi a censura. Ela atingiu a produção artística e
controlou com pulso firme a imprensa. Os militares criaram o
"Conselho Superior de Censura", que fiscalizava e enviava ao Tribunal
da Censura os jornalistas e meios de comunicação que burlassem as regras. Os
que não seguissem as regras e ousassem fazer críticas ao país, sofriam
retaliação --cunhou-se até o slogan "Brasil, ame-o ou deixe-o." Não
são raras histórias de jornalistas que viveram problemas no período. "Numa
visita do presidente (Ernesto) Geisel a Alagoas, achamos de colocar as
manchetes no jornalismo da TV: 'Geisel chega a Maceió; Ratos invadem a
Pajuçara'. Telefonaram da polícia para o Pedro Collor [então diretor do grupo]
e ele nos chamou na sala dele e tivemos que engolir o afastamento do jornalista
Joaquim Alves, que havia feito a matéria dos ratos", conta o jornalista
Iremar Marinho, citando que as redações eram visitadas quase que diariamente
por policiais federais. Para cercear o direito dos jornalistas, foi
criada, em 1967, a
Lei de Imprensa. Ela previa multas pesadas e até fechamento de veículos e
prisão para os profissionais. A lei só foi revogada pelo STF em 2009. Muitos
jornalistas sofreram processos com base na lei mesmo após a
redemocratização. "Fui processado em 1999 porque publiquei declaração
de Fulano contra Beltrano. A Lei de Imprensa da Ditadura permitia isso: punir o
mensageiro, que é o jornalista", conta o jornalista e blogueiro do UOL, Mario Magalhães
3. Amazônia e índios sob risco
No governo militar, teve início um
processo amplo de devastação da Amazônia. O general Castelo Branco disse, certa
vez, que era preciso "integrar para não entregar" a Amazônia. A
partir dali, começou o desmatamento e muitos dos que se opuseram morreram. "Ribeirinhos,
índios e quilombolas foram duramente reprimidos tanto ou mais que os moradores
das grandes cidades", diz a jornalista paraense e pesquisadora do tema,
Helena Palmquist. A ideia dos militares era que Amazônia era "terra sem
homens", e deveria ser ocupada por "homens sem terra do
Nordeste." Obras como as usinas hidrelétricas de Tucuruí e Balbina
também não tiveram impactos ambientais ou sociais previamente analisados, nem
houve compensação aos moradores que deixaram as áreas alagadas. Até hoje,
milhares que saíram para dar lugar às usinas não foram indenizados. A luta pela
terra foi sangrenta. "Os Panarás, conhecidos como índios gigantes
perderam dois terços de sua população com a construção da BR-163 --que liga
Cuiabá a Santarém (PA). Dois mil Waimiri-Atroaris, do Amazonas, foram
assassinados e desaparecidos pelo regime militar para as obras da BR-174. Nove
aldeias desse povo desapareceram e há relatos de que pelo menos uma foi
bombardeada com gás letal por homens do Exército", afirma.
4. Baixa representação política
e sindical
Um dos primeiros direitos outorgados
aos militares na ditadura foi a possibilidade do governo suspender os direitos
políticos do cidadão. Em outubro de 1965, o Ato Institucional número 2 acabou
com o multipartidarismo e autorizou a existência de apenas dois: a Arena, dos
governistas, e o MDB, da oposição. O problema é que existiam diversas siglas,
que tiveram de ser aglutinadas em um único bloco, o que fragilizou a oposição.
"Foi uma camisa-de-força que inibiu, proibiu e dificultou a expressão
político-partidária. A oposição ficou muito mal acomodada, e as forças tiveram
que conviver com grandes contradições", diz o cientista político da
Universidade Federal de Pernambuco, Michael Zaidan. As representações sindicais
também foram duramente atingidas por serem controladas com pulso forte pelo
Ministério do Trabalho. Isso gerou um enfraquecimento dos sindicatos,
especialmente na primeira metade do período de repressão. "Existiam
as leis trabalhistas, mas para que elas sejam cumpridas, com os reajustes, é
absolutamente necessário que os sindicatos judicializem, intervenham para que
os patrões respeitem. Essas liberdades foram reprimidas à época. Os sindicatos
eram compostos mais por agentes do governo que trabalhadores", lembra
Zaidan.
5. Saúde pública fragilizada
Se a saúde pública hoje está longe do
ideal, ela ainda era mais restrita no regime militar. O Inamps (Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo
atendimento, com seus hospitais, mas era exclusivo aos trabalhadores
formais. "A imensa maioria da população não tinha acesso",
conta o cardiologista e sindicalista Mário Fernando Lins, que atuou na época da
ditadura. Surgiu então a prestação de serviço pago, com hospitais e
clínicas privadas. "Somente após 1988 é que foi adotado o SUS (Sistema
Único de Saúde), que hoje atende a uma parcela de 80% da população", diz
Lins. Em 1976, quase 98% das internações eram feitas em hospitais privados.
Além disso, o modelo hospitalar adotado fez com a que a assistência primária
fosse relegada a um segundo plano. Não existiam planos de saúde, e o saneamento
básico chegava a poucas localidades. "As doenças infectocontagiosas, como
tuberculose, eram fonte de constante preocupação dos médicos", afirma
Lins. Segundo estudo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas),
"entre 1965/1970 reduz-se significativamente a velocidade da queda [da
mortalidade infantil], refletindo, por certo, a crise social econômica
vivenciada pelo país".
6. Linha dura na educação
A educação brasileira passou por
mudanças intensas na ditadura. "O grande problema foi o controle sobre
informações e ideologia, com o engessamento do currículo e da pressão sobre o
cotidiano da sala de aula", sintetiza o historiador e professor da Universidade
Federal de Alagoas, Luiz Sávio Almeida. As disciplinas de filosofia e
sociologia foram substituídas pela de OSPB (Organização Social e Política
Brasileira, caracterizada pela transmissão da ideologia do regime autoritário,
exaltando o nacionalismo e o civismo dos alunos e, segundo especialistas,
privilegiando o ensino de informações factuais em detrimento da reflexão e da
análise) e Educação, Moral e Cívica. Ao mesmo tempo, com o baixo índice de
investimento na escola pública, as unidades privadas prosperaram. Na área de
alfabetização, a grande aposta era o Mobral (Movimento Brasileiro para
Alfabetização), uma resposta do regime militar ao método elaborado pelo
educador Paulo Freire, que ajudou a erradicar o analfabetismo no mundo na mesma
época em que foi considerado "subversivo" pelo governo e exilado.
Segundo o estudo "Mapa do Analfabetismo no Brasil", do
Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), do
Ministério da Educação, o Mobral foi um "retumbante fracasso." Os
problemas também chegaram às universidades, com o afastamento delas dos centros
urbanos e a introdução do sistema de crédito. "A intenção do regime era
evitar aglomeração perto do centro, enquanto o sistema de crédito foi criado
para dispersar os alunos e não criar grupos", diz o historiador
e vice-reitor do Fejal (Fundação Educacional Jayme de Altavila), Douglas
Apratto.
7. Corrupção e falta de
transparência
No período da ditadura, era
praticamente impossível imaginar a sociedade civil organizada atuando para
controlar gastos ou denunciando corrupção. Não havia conselhos fiscalizatórios
e, com a dissolução do Congresso Nacional, as contas públicas não eram
analisadas, nem havia publicidade dos gastos públicos, como é obrigatório hoje.
"O maior antídoto da corrupção é a transparência. Durante a ditadura,
tivemos o oposto disso. Os desvios foram muitos, mas acobertados pela força das
baionetas", afirma o juiz e um dos autores da Lei da Ficha Limpa, Márlon
Reis. Reis afirma que, ao contrário dos anos de chumbo, hoje existem
órgãos fiscalizatórios, imprensa e oposição livres e maior publicidade dos
casos. "Estamos muito melhor agora, pois podemos reagir", diz. Outro
ponto sempre questionado no período de ditadura foram os recursos investidos em
obras de grande porte, cujos gastos eram mantidos em sigilo. "Obras
faraônicas como Itaipu, Transamazônica e Ferrovia do Aço, por exemplo, foram
realizadas sem qualquer possibilidade de controle. Nunca saberemos o montante
desviado", disse Reis. "Durante a ditadura, a corrupção não foi uma
política de governo, mas de Estado, uma vez que seu principal escopo foi a
defesa de interesses econômicos de grupos particulares."
8. Nordeste mais pobre e
migração
A consolidação do Nordeste como região
mais pobre do país teve grande participação do governo do militares.
"Nenhuma região mudou tanto a economia como o Nordeste", diz o doutor
em economia regional Cícero Péricles Carvalho, professor da Universidade Federal
de Alagoas. Com as políticas adotadas, a região teve um crescimento da
pobreza. "Terminada a ditadura, o Nordeste mantinha os piores indicadores
nacionais de índices de esperança de vida ao nascer, mortalidade infantil e
alfabetização. Entre 1970 e 1990, o número de pobres no Nordeste aumentou de
19,4 milhões para 23,7 milhões, e sua participação no total de pobres do país
subiu de 43% para 53%", afirma Péricles. O crescimento urbano registrado
teve como efeito colateral a migração desregulada. "O modelo
urbano-industrial reduziu as atividades agropecuárias, que eram determinantes
na riqueza regional, com 41% do PIB, para apenas 14% do total em 1990", diz
Péricles. Enquanto o campo era relegado, as atividades urbanas saltaram,
na área industrial, de 12% para 28% e, na área do comércio e serviços, de 47%
para 58%. "A migração gerou mais pobreza nas cidades, sem diminuir a
miséria no campo. A população do campo reduziu-se a um terço entre 1960 e
1990", acrescenta Péricles.
9. Desigualdade: o bolo cresceu, mas não foi dividido
"É preciso fazer o bolo crescer para
depois dividi-lo". A frase do então ministro da Fazenda Delfim Netto é,
até hoje, uma das mais lembradas do regime militar. Mas o tempo mostrou que o
bolo cresceu, sim, ficou conhecido como "milagre brasileiro", mas
poucos comeram fatias dele. A distribuição de renda entre os estratos sociais
ficou mais polarizada durante o regime: os 10% dos mais ricos que tinham 38% da
renda em 1960 e chegaram a 51% da renda em 1980. Já os mais pobres, que tinham
17% da renda nacional em 1960, decaíram para 12% duas décadas depois. Assim, na
ditadura houve um aumento das desigualdades sociais. "Isso levou o país ao
topo desse ranking mundial", diz o professor de Economia da Universidade
Federal de Alagoas, Cícero Péricles. Entre 1968 e 1973, o Brasil cresceu acima
de 10% ao ano. Mas, em contrapartida, o salário mínimo --que vinha recuperando
o poder de compra nos anos 1960-- perdeu com o golpe. "Em 1974, em pleno
'milagre', o poder de compra dele representava a metade do que era em
1960", acrescenta Péricles. "As altas taxas de crescimento
significavam mais oportunidades de lucros altos, renda e crédito para consumo
de bens duráveis; para os mais pobres, assalariados ou informais, restava a
manutenção de sua pobreza anterior", explica o economista.
10. Precarização do trabalho
Apesar de viver
o "milagre brasileiro", a ditadura trouxe defasagem aos salários dos
trabalhadores. "Nossa última ditadura cívico-militar foi, em certo ponto,
economicamente exitosa porque permitiu a asfixia ao trabalho e, por conseqüência,
a taxa salarial média", diz o doutor em ciências sociais e blogueiro do UOL, Leonardo Sakamoto. Na época da
ditadura, a lei de greve, criada em 1964, sujeitava as paralisações de
trabalhadores à intervenção do Poder Executivo e do Ministério Público.
"Ir à Justiça do Trabalho para reclamar direitos era possível, mas pouco
usual e os pedidos eram minguados", explica Sakamoto. "Nada é tão
atrativo ao capital do que a possibilidade de exercício de um poder monolítico,
sem questionamentos", diz Sakamoto, que cita a asfixia dos sindicatos, a
falta de liberdade de imprensa e política foram "tão atraentes a
investidores que isso transformou a ditadura brasileira e o atual regime
político e econômico chinês em registros históricos de como crescimento
econômico acelerado e a violência institucional podem caminhar lado a
lado".
TEXTO: UOL
Carlos Madeira